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Índia usa Guerra da Ucrânia em busca de atingir novo status global
País se equilibra entre pluralidade vibrante de sua democracia e guinada em direção ao iliberalismo ler
Sentado no edifício governamental inaugurado pelo Raj britânico menos de duas décadas antes de a Índia livrar-se do jugo imperial, o ministro do Exterior indiano, S. Jaishankar, não precisa ser lembrado de como as marés da história levam sistemas antiquados embora para dar lugar a sistemas novos.
Para ele, o momento atual é algo dessa natureza. “Uma ordem mundial ainda muito ocidental”, como disse ele, está sendo eliminada rapidamente pelo impacto da Guerra na Ucrânia, para dar lugar a um mundo de “multialinhamento” em que os países vão escolher “suas políticas, preferências e interesses próprios”.
É o que a Índia vem fazendo desde que a guerra começou. Ela rejeitou a pressão americana e europeia na ONU para condenar a invasão, converteu Moscou em sua maior fornecedora de petróleo e rejeitou o que vê como sendo hipocrisia do Ocidente. Longe de pedir desculpas pelo que está fazendo, o país tem reafirmado suas escolhas e não tem ocultado o fato de estar defendendo seus próprios interesses.
Com seus quase 1,4 bilhão de habitantes, a Índia, que deve em pouco tempo ultrapassar a China para se tornar o país mais populoso do mundo, precisa de petróleo russo barato para sustentar seu crescimento anual de 7% e arrancar milhões de pessoas da pobreza. Essa necessidade é inegociável. A Índia devora todo o óleo russo que necessita, chegando a adquirir um pouco a mais para exportação.
Abram alas para a Índia do premiê Narendra Modi, que corre atrás de seus próprios interesses com assertividade inédita, rejeitando qualquer senso de inferioridade e qualquer alinhamento irrestrito com o Ocidente. Mas qual Índia vai desfilar pelo palco global do século 21 e como sua influência será sentida?
O país se encontra numa encruzilhada, equilibrando-se entre a pluralidade vibrante de sua democracia desde a independência em 1947 e uma guinada em direção ao iliberalismo, sob Modi. O chamado “renascimento hindu” do premiê coloca em risco alguns dos pilares fundamentais da democracia indiana: tratamento igual a todos os cidadãos, o direito de dissensão, a independência do Judiciário e da imprensa.
A democracia e o debate ainda estão cheios de vigor –o partido Bharatiya Janata (BJP), de Modi, perdeu uma eleição municipal em Déli neste mês—, e a popularidade do premiê é grande. Muitos pensam que a Índia é vasta e diversificada demais para algum dia sucumbir a alguma imposição nacionalista unitária.
A ordem mundial do pós-guerra não incluía um lugar para a Índia na mesa principal. Mas agora, num momento em que a agressão militar da Rússia sob Vladimir Putin ilustrou perfeitamente como pode ser um mundo composto de ditadores e rivalidades imperiais, é possível que a Índia faça a balança pender em direção a uma ordem dominada ou pelo pluralismo democrático ou por líderes repressores.
Resta ver para qual lado vai pender o nacionalismo de Modi. Ao mesmo tempo em que enfraqueceu o modelo pluralista e secularista do país, esse nacionalismo levou muitos indianos a sentir um novo orgulho de seu país e elevou a estatura internacional da Índia.
Não há muçulmanos no gabinete de Modi. O premiê vem reagindo com silêncio aos ataques de turbas hindus furiosas contra muçulmanos. “O ódio penetrou na sociedade em um nível aterrador”, disse a romancista Arundhati Roy. Pode ser verdade, mas por enquanto a Índia de Modi esbanja confiança.
A Guerra da Ucrânia agravou os efeitos da Covid e alimentou a ascensão da Índia. Juntos, os dois fatores levaram as grandes corporações a reduzir o risco nas cadeias globais de fornecimento, diversificando na direção da Índia aberta e se distanciando da China, com seu aparato de vigilância de estado.
A guerra e a pandemia acentuaram a turbulência econômica global, da qual a Índia está relativamente protegida graças ao enorme mercado interno. Esses fatores contribuíram para as projeções de que até 2030 o país, hoje a quinta maior economia do mundo, se tornará a terceira maior, atrás de EUA e China.
COMUNHÃO E DIVISÃO
Em 2014, quando lançou sua campanha para liderar a Índia, Modi, 72, adotou como sua base política Varanasi, a cidade mais santa do hinduísmo, dizendo ter atendido ao chamado da “mãe Ganges” –o rio da vida. Desde então, ele talhou um corte de arenito rosado que atravessa a cidade.
Conhecido como “o corredor” e aberto um ano atrás, o projeto liga o templo Kashi Vishwanath, dedicado ao deus hindu Shiva, à margem do rio Ganges, a 400 metros de distância. O corredor pedestre amplo e quase estranhamente imaculado, que conta com museu e outras instalações turísticas, liga o templo mais reverenciado da cidade ao rio onde os hindus lavam seus pecados. É uma obra representativa de Modi.
Aberto em meio a um labirinto de mais de 300 casas destruídas para sua construção, o corredor interliga a vida política do premiê às mais profundas das tradições hindus. Ao mesmo tempo, proclama a disposição de impelir o país para o futuro por meio de iniciativas ousadas que rompem com o caos e a decadência. Nacionalista hindu e entusiasta da tecnologia, Modi é um político que rompe com a ordem estabelecida.
Vindo de família humilde do estado de Gujarat —e de status baixo no sistema de castas, a hierarquia social—, Modi construiu seu próprio caminho e acabou por encarnar a Índia que quer subir na vida.
Vishwambhar Nath Mishra, professor de engenharia e líder religioso hindu em Varanasi, disse que o corredor foi “um erro” que destruiu 142 santuários antigos –um exemplo do estilo demolidor pelo qual Modi tem preferência. “Aqui em Varanasi sempre fomos uma família singular formada por muçulmanos, cristãos e hindus que dialogamos e resolvemos as coisas juntos, mas Modi opta por criar tensões para se eleger”, disse Mishra. “Se ele está tentando criar uma nação hindu, isso é muito perigoso.”
Não é fácil entrar no complexo situado ao alto do novo corredor de Modi, onde a mesquita Gyanvapi, do século 17, ladeia o templo Kashi Vishwanath. Os rígidos controles de segurança são demorados, porque o local é um dos epicentros das inflamadas tensões entre hindus e muçulmanos na Índia.
Há guardas armados em toda parte. Eles se posicionam ao lado da mesquita, protegida atrás de uma cerca metálica de mais de seis metros de altura coroada com rolos de arame laminado.
Hoje há uma série de processos na Justiça em torno da mesquita. Uma investigação ordenada por um tribunal neste ano alegou ter descoberto um “lingam” antigo (uma representação abstrata do deus hindu Shiva) no recinto da mesquita. Pelo menos para os hindus de linha dura, a descoberta determinou que eles devem ter o direito de orar no local. Grandes reuniões de oração de muçulmanos foram proibidas.
Segundo a narrativa em ascensão que Modi nada faz para desencorajar, a Índia pertence antes de tudo à sua maioria hindu. Os intrusos muçulmanos do Império Mogol e de outros períodos ocupam um segundo lugar. Uma mesquita deve dar lugar a um templo, se for possível provar que um templo a antecedeu.
Enquanto Putin optou por retratar a Ucrânia como o lugar de nascimento do mundo russo, inseparável da pátria russa, e por abraçar a Igreja Ortodoxa como bastião de seu poder, Modi escolheu Varanasi para ser o transmissor principal de sua declaração da Índia como nação essencialmente hindu. É claro que ele o fez no interesse da consolidação do poder, não da conquista.
Três décadas atrás, a demolição por uma multidão hindu enfurecida de uma mesquita do século 16 na cidade de Ayodhya, no norte da Índia, que os hindus afirmam acreditar ser o local de nascimento do deus Ram, levou à morte de 2.000 pessoas e impeliu a ascensão do partido de Modi.
Um templo hindu está sendo construído no local. Modi, que presidiu sobre o início da obra, em 2020, disse que o novo templo é “o símbolo moderno de nossas tradições”.
Diante dessas iniciativas, Arundhati Roy, a escritora, manifestou preocupação compartilhada por muitos. “O sári de Varanasi, usado por hindus e tecido por muçulmanos, era um símbolo de tudo que era tão entremeado e que agora está sendo separado”, disse. “Uma ameaça de violência paira sobre a cidade.”
UM EQUILÍBRIO DELICADO
A Índia crê que a interconexão do mundo de hoje pesa mais que a fragmentação e torna irrelevantes as alusões a uma Guerra Fria renovada. Se um período de desordem parece inevitável enquanto o poder ocidental declina, ele pode ser moderado pela interdependência econômica, reza o argumento indiano.
Com a desigualdade se agravando, a segurança alimentar piorando, a segurança energética diminuindo e a crise climática se acelerando, mais países perguntam que respostas a ordem mundial pós-1945 dominada pelo Ocidente é capaz de oferecer. Parece que a Índia acredita que pode cumprir a função de intermediária, lançando uma ponte sobre as divisões Oriente-Ocidente e Norte-Sul.
Jaishankar disse: “Diria que, de modo geral na história da Índia, o país tem tido um relacionamento muito mais pacífico e produtivo com o mundo do que tem sido o caso da Europa, por exemplo. A Europa tem sido muito expansionista, razão por que tivemos o período do imperialismo e colonialismo. Mas na Índia, não obstante termos sido sujeitos ao colonialismo por dois séculos, não há ressentimento contra o mundo, não há raiva. A Índia é uma sociedade muito aberta”.
Outra coisa a mencionar é que a Índia se situa entre duas potências hostis: Paquistão e China. Em dezembro ocorreu outra escaramuça na fronteira contestada entre China e Índia. Ninguém morreu, diferentemente de 2020, quando pelo menos 20 soldados indianos e quatro chineses foram mortos. Mas a tensão ainda é elevada. “O relacionamento é extremamente carregado”, disse Jaishankar.
Uma escalada na fronteira é possível a qualquer momento, mas parece improvável que a Índia possa contar com a Rússia, dada a crescente dependência econômica e militar de Moscou da China. Isso torna o relacionamento estratégico da Índia com o Ocidente crucial. À luz da Guerra da Ucrânia, porém, cada parte está se ajustando ao fato de que a outra vai escolher seus princípios a dedo.
A Índia se encontra em posição delicada. Diante da crítica dos EUA, o país optou neste ano por participar de exercícios militares russos que incluíram unidades chinesas. Ao mesmo tempo, integra uma coalizão de quatro países, o Quad, que inclui EUA, Japão e Austrália e defende “um Indo-Pacífico livre e aberto”.
Esse é o multialinhamento da Índia em ação. A Guerra na Ucrânia apenas reforçou o engajamento de Nova Déli com esse caminho. Washington vem se esforçando muito ao longo de muitos anos para fazer da Índia o contrapeso democrático asiático à autoritária China de Xi Jinping. Mas o mundo, conforme é visto a partir da Índia, é complexo demais para tais opções binárias.
Se a administração Biden tem estado descontente com a abordagem pragmática da Índia a Putin desde a invasão russa da Ucrânia, ela também a tem aceito. Com a ascensão da China, a realpolitik americana requer que os EUA não se indisponham com Narendra Modi.
Fonte: Folha de São Paulo/The New York Times/Roger Cohen