Washington explica que o lado externo das células apresenta algumas proteínas aderidas que conferem a elas uma carga elétrica negativa. Já os anticorpos também apresentam carga elétrica negativa. Aqui vale lembrar das aulas de Física, em especial das que tratam de eletricidade: cargas elétricas de sinais iguais se repelem, cargas elétricas com sinais diferentes se atraem.
E é aí que entra o “cavalo de Troia do bem”. Trata-se de um composto lipídico catiônico que apresenta carga positiva. Esse composto foi usado para englobar o anticorpo do vírus da raiva. É como se o composto fosse uma mochila, e o anticorpo, o conteúdo dentro dela. Dentro do composto, o anticorpo foi empacotado pela carga positiva.
Como as células têm carga negativa e o anticorpo dentro do composto passou a ter carga positiva, quando os pesquisadores inocularam o “cavalo de Troia do bem” dentro do encéfalo dos camundongos infectados, célula e anticorpo se atraíram. O anticorpo entrou na célula (processo chamado de transfecção), onde conseguiu atacar o vírus da raiva, impedindo sua replicação e a infecção de outras células.
O composto foi misturado com uma solução de anticorpos. Ao ser inoculado no cérebro dos animais, o complexo pode ou se fundir diretamente com a membrana plasmática (que delimita as células) e entregar o anticorpo diretamente dentro da célula (1), ou pode ser internalizado por ela e depois se fundir com o endossomo (uma espécie de compartimento responsável pelo transporte e digestão de partículas celulares), liberando o anticorpo no citoplasma (fluido existente dentro das células) (2). O anticorpo fica livre para neutralizar o vírus (3) – Infografia adaptada de Manual Bioporter Genlantis
“A pesquisa demonstra que é possível utilizar anticorpos produzidos contra o vírus da raiva de um modo que, inovadoramente, faz esses anticorpos entrarem nas células e combaterem o vírus”, destaca o orientador do trabalho, o professor Paulo Eduardo Brandão.
Protocolo de Milwaukee / Protocolo do Recife
Desde a descoberta da vacina da raiva, em 1885, na França, pelo cientista Louis Pasteur, até os dias atuais, foram relatados, em todo o mundo, apenas cinco sobreviventes: dois nos Estados Unidos (2004 e 2017); um na Colômbia (2008); e dois no Brasil (2008, em Pernambuco, e 2019, no Amazonas). Mas todos ficaram com sequelas. Essas pessoas foram tratadas com o Protocolo de Milwaukee, que consiste em induzir o estado de coma no paciente, seguido da aplicação de fármacos antivirais. No Brasil, ele foi adaptado e recebeu o nome de Protocolo do Recife.
Prevenção e tratamento
A principal forma de combate à raiva é a prevenção por meio da vacinação antirrábica de cães e gatos. Entretanto, o vírus também pode ser transmitido por animais silvestres infectados, principalmente morcegos.
O tratamento consiste na aplicação do soro e da vacina antirrábica.
“A vacina é constituída por partes do vírus, a qual irá induzir a produção de anticorpos. Essa produção de anticorpos pela resposta da vacina leva dez dias até que a resposta imunológica do indivíduo possa começar a combater a infecção, descreve o biólogo Washington Carlos Agostinho. Por isso, em caso de acidentes suspeitos, são efetuados os dois procedimentos, paralelamente. Enquanto a vacina ativa o sistema imunológico, o soro faz essa cobertura contra o vírus até que o sistema imunológico esteja apto”, conta.
Agora, os pesquisadores estão buscando publicar os achados em alguma revista científica. Segundo o professor Brandão, os próximos passos do projeto são realizar testes com mais doses desse tratamento e com outros tipos de vírus da raiva.
No Brasil, os casos de raiva são esporádicos. Segundo dados do Ministério da Saúde, entre 2010 a 2017, foram registrados 25 casos de raiva humana. Em 2014, não houve registros. Dos 25 casos, nove foram transmitidos por cães, oito por morcegos, quatro por primatas não humanos, três por felinos e, em um deles, não foi possível identificar o animal agressor. Quanto às mortes mundiais por raiva humana, especialistas da área acreditam que o número deve ultrapassar as 60 mil mortes anuais, devido à subnotificação.
Fonte: Valéria Dias. Jornal da Usp: https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-da-saude/cavalo-de-troia-do-bem-composto-leva-anticorpos-para-dentro-de-celula-infectada-por-virus-da-raiva/